Sentados ao redor de uma mesa, um grupo de amigos começa a falar sobre amor.
Um deles conta uma história antiga: no passado, havia seres compostos por duas pessoas (com dois sexos, quatro braços, quatro pernas, dois rostos e uma cabeça) que desafiaram os deuses e, por isso, foram divididos ao meio. Daí a nossa busca constante por aquele ou aquela que nos completa.
A narrativa foi apresentada em O Banquete, uma das obras mais conhecidas do filósofo grego Platão, que é centrada em vários discursos sobre o amor. A antiga crença é conhecida como o mito dos andróginos, e o personagem que a suscita é Aristófanes.
Durante séculos, seu relato tem sido usado como uma alegoria para entender por que nos apaixonamos, o que os amantes buscam em um relacionamento, e qual o papel do amor em nossas vidas.
Em seu último livro, El amor es imposible ("O amor é impossível", em tradução livre), o filósofo argentino Darío Sztajnszrajber desvenda justamente estas e outras facetas deste tema que toma grande parte do nosso tempo.
É uma obra provocadora, dividida em oito teses filosóficas, cuja capa mostra Cupido abatido por sua própria flecha.
Mas se Cupido está morto, quem o matou? O casamento, a monogamia, o poliamor, o desamor, o ideal romântico, Aristófanes? Ou será que, na realidade, o amor não está morto, é apenas impossível, e graças a essa impossibilidade ele sobrevive.
A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com o autor.
BBC News Mundo - Você sempre tentou difundir a filosofia para o público em geral. Por que você decidiu escrever especificamente sobre o amor agora?
Darío Sztajnszrajber - Basicamente porque, durante a pandemia, dei alguns cursos online, incluindo um chamado Filosofia do Amor, que me fez passar muito tempo organizando essas aulas e lendo, e isso me despertou o desejo de pensar sobre isso a partir de outras perspectivas.E quando terminei, me dei conta que tinha um livro.
O que acontece comigo é que há uma maneira de viver isso que (Friedrich) Nietzsche chamava de grandes valores, que sempre me incomodou.
Não sei por que nem a quem responsabilizar por isso: meus pais, minha educação religiosa ou o fato de ter nascido na década de 1960, mas desde muito garoto tenho essa espécie de desejo de sempre tentar, como dizem popularmente: "procurar pelo em ovo".
A mesma coisa aconteceu comigo com o amor, talvez porque eu tenha nascido e crescido em um lar com um pai e uma mãe que se casaram e viveram juntos até morrerem, um tipo de lar com um ideal romântico e administrativo de amor: uma família prototípica.
E essa experiência de amor que me foi passada me causou muita frustração. Acho que se eu tivesse me apaixonado de acordo com o arquétipo tradicional, e tivesse sido feliz, não estaria pensando sobre isso nem escrevendo nada.
Mas era tão poderoso esse ideal romântico que eu "carregava comigo", que toda vez que eu me apaixonava, acabava sofrendo.
É algo que também acontece comigo com Deus, ou com a verdade; Há idealizações que são tão distantes que, infelizmente, acabamos não conseguindo alcançá-las.
BBC News Mundo - Tão altas que ninguém está à altura…
Sztajnszrajber - Exatamente, ficamos ali, agarrados a algo que está se esvaindo, que está escapando de nós.
BBC News Mundo - Provavelmente, até mesmo os mais ignorantes em termos filosóficos já ouviram a história de O Banquete, de Platão, mas então a filosofia evoluiu em outras direções... Se os primeiros filósofos falavam sobre o amor, por que os que vieram depois parecem ter deixado o assunto de lado?
Sztajnszrajber - É verdade que, na Antiguidade, era um assunto muito mais exposto, e que depois outros assuntos se tornaram mais hegemônicos.
Mas atualmente, na filosofia, fala-se da virada afetiva e do retorno da questão do amor como tema fundamental, principalmente nos últimos anos, com a contribuição decisiva do feminismo.
Mas devemos lembrar que etimologicamente philia — philo é uma forma de amor, um amor mais amistoso, um amor mais comunitário, mas ainda é uma forma de amor; e não podemos esquecer a famosa definição da filosofia: amor pelo conhecimento.
Como, então, a filosofia pode deixar de abordar a questão do amor? Seria deixar de tratar de si mesma.
Em toda investigação filosófica, o amor está sempre presente, porque fazer filosofia supõe esse desejo de transcender aquilo que nos é apresentado como real, único e definitivo.
BBC News Mundo - Você mesmo admite que o título do seu livro, "O amor é impossível", é uma provocação, uma declaração que desafia o senso comum. Você convida o leitor a discutir o impossível e a pensar no impensável, mas, acima de tudo, a desconstruir "a concepção hegemônica do amor".
Qual é essa concepção hegemônica?
Sztajnszrajber - Esta concepção, também chamada de ideal romântico ou amor no senso comum, não tem uma definição única — mas, sim, abordagens diversas com uma infinidade de variáveis.
A mais importante delas pode ser resumida na ideia do amor como a busca pela minha cara metade, com o propósito de me completar e alcançar uma certa forma de plenitude, alcançando o que Platão chama de "aquilo que te falta".
Nesse sentido, o amor me permite encontrar sentido na vida, ou pelo menos parar de sentir falta dele.
Ironicamente, no livro eu me pergunto o que fazer depois de encontrar a plenitude, porque supostamente o que nos motiva a fazer a maioria das coisas é a busca, não a descoberta.
BBC News Mundo - Você sugere que isso também implica uma série de coisas...
Sztajnszrajber - Claro. Em primeiro lugar, que só há uma pessoa que me corresponde, o que é muito. Quero dizer: há 7 bilhões de pessoas no mundo, suficiente para que tenha a possibilidade técnica de encontrar a pessoa certa.
E que essa correspondência é eterna, quando na realidade as pessoas mudam, os corpos mudam, e o quebra-cabeça começa a se deteriorar um pouco.
Também supõe uma ideia fusionista do amor que me incomoda, porque essas duas metades formam então uma unidade, e essa unidade supõe uma fusão que, em algum momento, dissolve as singularidades, as diferenças.
Para mim, no entanto, o que mais importa no amor é o encontro com o outro que realça a diferença, e não a diminui em prol de uma fusão na qual sempre há um que funde mais ao outro. Não é uma fusão equivalente.
Ao mesmo tempo, em teoria, o amor é o encontro com o outro, mas muitas vezes acabamos pensando nele como algo que me faz bem, que me nutre, que me realiza, que me preenche: eu, eu, eu, eu...
E o outro?
O olhar está tão focado no que o amor gera em alguém, que eu trabalho com essa ideia de que o amor se torna uma questão de ganho, de algo que engrandece o sujeito e, então, nas palavras da filosofia, desconsidera o outro.
BBC News Mundo - O que devemos fazer então?
Sztajnszrajber - Se a verdadeira intenção é conhecer o outro, o outro geralmente acaba ultrapassando os limites dentro dos quais a pessoa se sente confortável.
É por isso que o amor para mim é a experiência de um desmoronamento, porque o que você achava que estava funcionando perfeitamente até aquele momento, desmorona.
A flecha do Cupido basicamente faz com que aquele indivíduo tão dono de si mesmo, que acha que sabe o que quer da vida, se mude para outro lugar.
Isso se a pessoa se deixar levar.
Porque também é possível se blindar imunologicamente contra qualquer paixão, se proteger atrás de uma concepção fechada de amor, e fazer do amor simplesmente um combustível para se ratificar o que é.
BBC News Mundo - Você diz que o amor é uma coisa, e o dispositivo amoroso é outra. Como funciona este dispositivo institucional e administrativo ao qual você se refere no livro?
Sztajnszrajber - Todo o livro é uma proposta de desconstrução do amor, de evidenciar as contradições internas de qualquer proposta que se apresente como superlativa.
Desconstruir o amor não é mostrar que existem outras maneiras de vivenciá-lo — mas, sim, revelar os interesses que estão em jogo na versão canônica.
Vivemos em uma sociedade marcada pelo vínculo matrimonial que rege a maioria das relações afetivas. A questão é como alguém se relaciona com essa instituição.
Uma coisa é pensar que o casamento consuma o significado da existência e da transcendência divina, e outra é se casar porque legalmente é muito mais conveniente, e até divertido estabelecer o vínculo matrimonial.
E, no dia em que o casamento não der mais certo, se possa ter a mesma leveza para sair dele.
O que permeia permanentemente o senso comum é que em cada experiência de vida, tudo está em jogo, e me parece que temos que nos afastar disso
A necessidade de que cada ato consuma um significado é uma forma de tirar a nossa liberdade, porque é preciso estar ali cumprindo os mandatos, os papéis, o que é exigido de nós.
BBC News Mundo - No livro, você sugere que o amor pode aprender algo com a amizade.
Sztajnszrajber - Na tese 7 do livro, tento esboçar uma relação conceitual entre o amor e a amizade, porque vejo que é um amor com muito menos amarras.Talvez o mais importante seja sua não institucionalização. Não existe casamento para amigos. Não há uma instituição legal para a amizade.Isso mostra que o amor acaba caindo em uma institucionalidade que de alguma forma o leva para outro plano, onde há outros interesses em jogo que usam o amor mais como uma maquiagem.Em nome do amor, as instituições jurídicas consolidam uma estrutura social que exige um formato de família no qual se supõe que a pessoa entre por amor, mas, na realidade, as regras e os valores em jogo são os das instituições.
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BBC News Mundo - Não as regras do desejo…
Sztajnszrajber - Não as regras do desejo, não as regras da emoção…Um casamento funciona mesmo que não haja amor, e isso é terrível.Isso não acontece em uma amizade, e não é por acaso.
BBC News Mundo - Você também ressalta que a amizade não é monogâmica. O amor, sim.
Sztajnszrajber - A intenção do livro não é discutir a monogamia em termos de por quantas pessoas você pode se apaixonar.O que mais me interessa na questão da monogamia é entender que se trata de uma estrutura que tem um propósito econômico e político, não afetivo.
BBC News Mundo - Você destaca que a dissolução da monogamia acarretaria o fim de toda uma ordem social que vai além do mundo dos afetos. O que você quer dizer?
Sztajnszrajber - Me parece que se a matriz monogâmica não funcionasse, não haveria como organizar nossas energias produtivas.
No livro, brinco com um imaginário em que, se vivêssemos em uma sociedade pós-monogâmica e tivéssemos vários relacionamentos amorosos, o tempo que dedicaríamos ao trabalho seria nulo, porque estaríamos sempre vivendo de paixão em paixão.
Há algo sobre a administração temporal do erótico, confinado a estruturas que permitem que sejamos produtivos a maior parte do tempo.
E o amor, ao que me parece, é um alerta contra a produtividade.
Uma paixão não apenas te deixa apaixonado por alguém, como também te deixa idiota e, em algum momento, incapaz de ser produtivo da maneira que se espera de você.
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BBC News Mundo - Falando em monogamia, no livro você diz que o desafio poliamoroso não a ameaça, mas confirma sua vigência. Por que você acha que o poliamor é funcional para a monogamia?
Sztajnszrajber - Acredito que é fundamental questionar os rótulos, e acho que nos últimos anos o poliamor tem sido rotulado de forma exagerada, caricatural, descrevendo-o mais com a intenção de mostrar suas contradições e rir das suas ambiguidades.
Esses pontos caricatos acabam virando mais assunto de programa de fofoca na TV do que uma reflexão filosófica sobre o que está em jogo em um relacionamento amoroso.
Então essa imagem jocosa do poliamor acaba sendo absolutamente funcional para uma monogamia que se reveste de normalidade.
Por Matías Zibell - BBC News Mundo via O Povo